Debate sobre Marco Legal da GD segue longe do fim, mesmo após regulamentação

Debate sobre Marco Legal da GD segue longe do fim, mesmo após regulamentação

Publicado em janeiro de 2022, o Marco Legal da Geração Distribuída (Lei 14.300/22) entrou oficialmente em vigor na primeira semana deste ano, após um longo – e nada tranquilo – trajeto percorrido entre as discussões iniciais sobre o assunto até o estabelecimento das novas regras. Não foram poucas as dúvidas, críticas e opiniões divididas em torno do cenário que se aproximava para os adeptos da geração própria de energia.

Um mês após a legislação enfim se tornar realidade, o tema voltou a ser amplamente discutido devido à aprovação da regulamentação da lei pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), realizada durante reunião pública entre os diretores da entidade em 7 de fevereiro. As diretrizes, aprovadas por unanimidade pela agência, abrangem a garantia de direitos e deveres dos consumidores e das empresas distribuidoras. O texto ainda visa estabelecer regras claras para a conexão dos sistemas à rede elétrica, além de abordar a previsão de mecanismos de compensação de energia gerada em excesso, a definição de critérios para a cobrança pelo uso da rede de distribuição, entre outros tópicos.

De acordo com o diretor-relator do processo, Hélvio Guerra, as discussões, classificadas por ele como construtivas, contribuíram para o enriquecimento do processo. “O setor elétrico está de parabéns. A divergência é a beleza do colegiado, pois é nela que conseguimos construir melhor. Minha busca foi desde o início pelo equilíbrio, e tentei reproduzir no voto essa condição”, destacou, durante deliberação sobre a medida.

A importância da regulamentação também foi exaltada pelo diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa. “Foi um processo amplamente discutido, nós ouvimos todas as áreas técnicas, inclusive a Procuradoria Federal mais de uma vez para construirmos a melhor decisão. É um momento muito marcante para o setor elétrico e, se não concordamos 100%, posso afirmar que saímos maiores do que quando entramos nessa discussão. Parabenizo todas as áreas técnicas da Aneel, pois o processo foi bastante complexo. Nunca haverá unanimidade, mas tenho certeza que exercemos o nosso papel com louvor”, afirmou.

De fato, a nova legislação está longe de ser consenso. Entre as questões de maior divergência destaca-se o aumento progressivo da cobrança do fio B, que faz parte da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e envolve todos os custos relacionados à utilização do sistema de distribuição. 

Avanços e entraves

Na visão da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), a regulamentação da lei traz avanços importantes, mas ainda há pontos legais a serem ajustados. A entidade destaca que o colegiado da Aneel endereçou adequadamente o ponto mais crítico dos três apresentados pela associação: a cobrança de taxas em duplicidade sobre os pequenos consumidores que geram a própria energia, e esclareceu que os dois pontos restantes – cobrança de demanda na baixa tensão e optante B – dependem de ajustes na redação da lei.

“Houve, portanto, avanços importantes em relação ao que tinha sido proposto pelas áreas técnicas da Aneel, sobretudo a eliminação da cobrança em duplicidade do custo de disponibilidade e da chamada TUSD Fio B, encargo pelo uso da rede, o que afastou o risco de inviabilizar a geração própria de energia solar para a sociedade brasileira”, explica Bárbara Rubim, vice-presidente de geração distribuída (GD) da Absolar.

O presidente executivo da entidade, Rodrigo Sauaia, acrescenta que, no caso dos dois pontos críticos pendentes, a Absolar está trabalhando junto ao Congresso Nacional para que estes sejam endereçados o mais rápido possível. Ainda segundo a instituição, dos comandos trazidos pelo Marco Legal, falta, agora, o cálculo dos benefícios líquidos da geração própria ao setor elétrico. 

“Desde a publicação da lei, em janeiro de 2022, a Absolar trabalha para que estes benefícios sejam corretamente valorados e incluídos nas diretrizes a serem oficializadas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Esperamos que a preocupação muito falada pelo atual governo com a pauta ambiental e climática se traduza em diretrizes que impulsionem ainda mais a geração distribuída renovável”, aponta Sauaia.

Durante os diálogos com os diretores do órgão regulador, a entidade também alertou para a importância da atuação da Aneel na fiscalização das distribuidoras em relação ao cumprimento dos prazos e nas obrigações previstas na lei e na regulamentação e em questões concorrenciais, garantindo o equilíbrio de mercado para os pequenos empreendedores solares poderem competir em iguais condições com os grandes grupos econômicos do setor. 

Inconsistências

Também insatisfeita com deliberações presentes na regulação, a Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD) protocolizou uma reclamação formal junto à Aneel, em parceria com a Associação Baiana de Energia Solar (ABS). No documento, a organização se posiciona contra a decisão da diretoria da agência reguladora em aprovar a Resolução Normativa 1.059/2023 – que regulamenta a Lei 14.300/2022 e altera as disposições da RN 1.000/2021.

Como justificativa, a entidade alega que há conflitos de legalidade na nova resolução, uma vez que as resoluções da Aneel “devem estar em conformidade com outras regulamentações, como portarias, decretos e normas técnicas estabelecidas por órgãos competentes”, sendo que “as resoluções jamais poderão contrariar leis federais, pois estas têm hierarquia superior no escopo piramidal da ordem jurídica”, afirma o documento. A associação se refere ao que considera ser violações contidas na Resolução Normativa, apontando questões como “a necessária suspensão do prazo de injeção por pendência (obra) da concessionária”, a “cobrança de Custo de Disponibilidade e obtenção de garantias”, bem como o que classifica como “restrições indevidas ao consumidor B-Optante”.

Em entrevista à revista O Setor Elétrico, o presidente-executivo da ABGD, Guilherme Chrispim, destaca que, apesar do que foi estabelecido pelo Marco Legal, a geração distribuída continua sendo vantajosa para o consumidor – em especial para o que faz uso da microgeração de energia, potência que, segundo o especialista, responde por 85% do que é produzido na GD brasileira. 

“Fazendo uma conta para facilitar o entendimento do leitor, temos um número referencial indicando que, anteriormente, havia o abatimento de aproximadamente 95% da fatura de energia. Agora, é claro que teremos que considerar questões como os impactos do fator de simultaneidade (o quanto se está consumindo versus o quanto está sendo gerado), além de analisar a qual distribuidora se está vinculado – em função da variação de custo da TUSD de fio B de uma região para outra. Ainda assim, baseado no número aproximado que já observamos, é possível ter uma proporcionalidade de abatimento da fatura de energia que chega a 80%”, afirma o executivo.

Chrispim também destaca que a conjunção de outros fatores ligados à geração distribuída, como o custo energético ao longo dos anos e a participação na transição energética, faz com que a GD continue valendo a pena. Contudo, é importante analisar o panorama do segmento a curto e médio prazo. “Claro, o cenário vai mudar um pouco. Acredito que esses próximos meses serão de observação do mercado – falo do cliente final tentando entender essa conta nova. É uma conta difícil de mensurar até mesmo para nós que somos do setor, devido a todas as variáveis citadas. Ainda assim, sabemos que gerar a própria energia seguirá sendo vantajoso”, analisa.

 “Mais justiça ao setor elétrico”

Para a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), o Marco Legal traz mais justiça ao setor elétrico. A entidade destaca que, com as novas regras, e após o período de transição até 2031, os consumidores comuns não terão mais de pagar pelos subsídios a quem instala placas solares.

A organização se refere à regra de transição estabelecida pela nova legislação, que determina que sistemas já existentes antes da publicação da lei, ou aqueles que protocolaram solicitação de acesso antes de 7 de janeiro deste ano (data em que o Marco Legal passou a valer), permanecerão sob a regra de paridade tarifária até 31 de dezembro de 2045. Essa situação é definida como “direito adquirido”.

Já projetos que se conectarem até julho deste ano terão direito à transição até 31 de dezembro de 2030, enquanto que unidades consumidoras instaladas após 18 meses da aprovação da lei garantem paridade tarifária até 31 de dezembro de 2028.

O diretor-executivo de Regulação da Abradee, Ricardo Brandão, classifica o Marco Legal da Geração Distribuída como um avanço. “A regra anterior era muito injusta, especialmente com o consumidor que não tem geração distribuída. A conta de energia não possui apenas a parte de geração. Ela tem transmissão, distribuição, encargos e tributos. Nesses aspectos, o consumidor que possui GD é exatamente igual ao seu vizinho que não tem”, avalia. 

“Em dias nublados e no período da noite, esse consumidor que produz energia durante o dia passa a recebê-la pela rede de distribuição e pela geração que vem dos outros empreendimentos de grande porte. É um serviço prestado para esse usuário, que antes ele não pagava. O que acontece é que, no processo tarifário, todos esses custos são rateados e repassados para os outros usuários que não têm geração distribuída”, conclui.

Futuro da GD: adaptações e evolução

Ao que tudo indica, o trajeto rumo a um cenário que atenda aos anseios de ambas as partes envolvidas – ou que, ao menos, não seja motivo para novas ações judiciais – está longe de chegar ao fim. Até lá, resta ao mercado de geração distribuída, além de contestar o que acredita não ser justo, adaptar-se à realidade que o envolve, fato destacado por Guilherme Chrispim. “Será preciso se ajustar, é algo natural da vida”. 

Para ilustrar melhor a questão, o executivo relembra a evolução de uma das tecnologias mais presentes no dia a dia da sociedade contemporânea, mas que em quase nada se assemelha às suas primeiras versões. “Podemos usar o exemplo da telefonia. No Brasil, alugava-se linhas telefônicas fixas. Era preciso, inclusive, declarar o telefone no imposto de renda, pois era algo de alto valor”.

“Já com os celulares, vivemos também a época em que as empresas lançavam aparelhos com dois chips. Fazia sentido naquele tempo, pois existia uma cobrança por deslocamento entre áreas. Atualmente, quase nem fazemos mais ligações telefônicas, mas a telecomunicação deixou de existir? Não, ela foi se adaptando, criando novos produtos e soluções. Acho que isso também vai acontecer com a GD, pois a lógica da transição energética está a nosso favor. De fato, vejo mudanças, mas não o fim do setor”, conclui o especialista.

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Fonte: www.osetoreletrico.com.br